terça-feira, 18 de setembro de 2012


CONFLITOS ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO E O EXECUTIVO

A construção da independência do Ministério Público


(por Mario Bonsaglia)

A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer as bases institucionais para a construção de um Estado Democrático de Direito, inovou substanciosamente em muitos aspectos. Em particular, reconfigurou e fortaleceu uma instituição relativamente antiga, o Ministério Público, destinado agora a ser, nas palavras do Ministro Celso de Mello, mais que o fiscal de qualquer lei, “o guardião da ordem jurídica, cujos fundamentos repousam na vontade soberana do Povo”.[1]
Nesse sentido, a Constituição outorgou ao Ministério Público a missão de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127). Com isso, indicou que caberia a essa instituição desempenhar um papel importante no delicado e essencial sistema de freios e contrapesos entre os órgãos de poder.
Condição “sine qua non” para o desempenho de tal papel e, de resto, para o exercício de todas aquelas funções institucionais indicadas no art. 129 de nossa Lei Fundamental é a independência do Ministério Público. Disso não descurou o constituinte, que garantiu a seus membros independência funcional e, à própria instituição, autonomia administrativa e orçamentária (art. 127).
Além disso, o Procurador-Geral da República, chefe do Ministério Público da União, que era, até 1988, livremente nomeado e demissível ad nutum pelo Presidente da República, ganhou estabilidade, somente podendo ser destituído, por proposta do Presidente da República, mediante aprovação da maioria absoluta do Senado, maioria essa também necessária à sua nomeação. Outrossim, o cargo passou a ser exclusivo de membro da carreira.  
Decorridas já quase duas décadas e meia, o quanto o Ministério Público – ou, melhor dizendo, cada Ministério Público – tem efetivamente correspondido às expectativas que foram geradas  é assunto para uma boa discussão. Mas é certo que sua independência, especialmente em face do Executivo, continua a ser uma das condições indispensáveis para que o Ministério Público possa desempenhar fielmente suas relevantes funções e, desse modo, ser efetivamente útil à sociedade, que nele investe não apenas a esperança de uma atuação efetivamente conforme os ditames constitucionais,  mas, também, preciosos recursos públicos.
Já em plena vigência da CF de 1988, um marco fundamental para a consolidação da independência do Ministério Público, com afirmação de sua autonomia frente ao Executivo, com o qual fora antes umbilicalmente ligado, foi o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, em 1991, do mandado de segurança nº 21.239-0 – DF. Foi o writ impetrado pelo então Procurador-Geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga, em face do Presidente Fernando Collor, que entendeu que lhe cabia, enquanto chefe do Executivo federal, a exemplo do que se passava na ordem jurídica anterior à nova constituição, a nomeação do Procurador-Geral do Trabalho, chefe de um dos ramos do Ministério Público da União.
O Procurador-Geral da República negou-se a dar posse ao nomeado (Antonio Carlos Roboredo) e recorreu ao Supremo Tribunal Federal, sustentando que à luz da novel Constituição não tinha mais o Presidente da República o poder de nomear e demitir livremente o Procurador-Geral do Trabalho, como previa o art. 64 da Lei nº 1341/51 – Lei Orgânica do Ministério Público da União.
O STF concedeu a segurança, impedindo assim a ingerência do Chefe do Executivo nos assuntos internos do Ministério Público. Foi reconhecido no Acórdão, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, que
“...
7. Do regime constitucional do Ministério Público, é de inferir, como princípio basilar, a rejeição de toda e qualquer investidura precária em funções institucionais do organismo, seja, no plano externo, pela proscrição da livre exoneração do Procurador-Geral da República, seja, no plano interno, pela vedação da amovibilidade dos titulares de seus escalões inferiores.
8. Do art. 84, XXVI [rectius: XXV], e parágrafo único - postos em cotejo com o art. 127, § 2º, da Constituição -, não resulta imperativamente a competência do Presidente da República para prover os cargos do Ministério Público, a qual, se admissível, em princípio, teria de decorrer de lei e fazer-se na forma nela prescrita: inadmissível, à luz da Constituição, o provimento em comissão pelo Presidente da República do cargo - se ainda existente - de Procurador-Geral da Justiça do Trabalho, é impossível receber o art. 64 da L. 1.341/51, que lhe outorgava o poder de livre nomeação e demissão do titular do cargo, para manter-lhe a atribuição do provimento, alterando-lhe, porém, o regime legal a que subordinada.

Efetivamente, a Constituição trazia consigo uma antinomia entre o art. 84, inc. XXV (assim como inc. VI) e respectivo parágrafo único e o art. 127, § 2º.:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VI - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei;
(...)
XXV - prover e extinguir os cargos públicos federais, na forma da lei;
(...)
Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII[2] e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.
Art. 127. (...)
(...)
§ 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento.

 É certo que dias após a entrada em vigor da nova Constituição, a pedido do então Procurador-Geral da República,[3] o Presidente da República editara o Decreto nº 96.945, de 13-10-88, através do qual, invocando expressamente o inc. XXV e o parágrafo único do art. 84 da Constituição, delegou competência ao Procurador-Geral da República para provimento de cargos no âmbito do Ministério Público da União.
Todavia, com a construção feita pelo STF no caso referido, secundada pela subseqüente edição da L.C. 75/93,[4] o inc. XXV e parágrafo único do art. 84 da C.F., no que toca ao Ministério Público, tornaram-se letra morta.
É forçoso reconhecer que, em face dos antinômicos dispositivos constitucionais enfocados, o STF optou por uma interpretação que prestigiava a autonomia do Ministério Público, favorecendo sua atuação efetiva no delicado sistema de freios e contrapesos de órgãos de poder. Essa contribuição do Supremo Tribunal Federal ao engrandecimento do Ministério Público merece ser ressaltada, tanto quanto a altivez da iniciativa do então Procurador-Geral da República.
Como se vê, a decisão do STF no M.S. 21.239-0 e a própria edição da L.C. 75/93 (assim como da correlata Lei 8625/93) foram marcos fundamentais para a autonomia do Ministério Público.
O acórdão proferido pelo STF no caso em questão pode ser acessado por meio deste endereço eletrônico: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85463
A lembrança do “caso Roboredo” – como ficou conhecido – é bastante oportuna neste momento, tendo em vista que o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, vem de impetrar mandado de segurança no STF (MS 31618, relator o Ministro Joaquim Barbosa) em face de ato da presidente da República tido como violador da autonomia orçamentária do Ministério Público, eis que alterou, sem amparo em permissivo constitucional, a proposta orçamentária elaborada pelo Ministério Publico da União, a qual apenas lhe cabia incluir, em sua integralidade, no projeto de Lei Orçamentária Anual encaminhado ao Congresso Nacional, para deliberação por parte deste.
Esse novo episódio vem demonstrar, mais uma vez, que a independência do Ministério Público não se sustenta apenas no berço esplêndido da Constituição Federal. Precisa ser objeto de constante vigilância, não só por parte da instituição e seus membros, mas também da própria sociedade. Essa independência, é bom que se o diga, não constitui, naturalmente, um fim em si próprio, como se fora um privilégio incompatível com a República. O Ministério Público existe para servir à sociedade, como guardião da ordem jurídica e fiscal dos demais órgãos públicos, e para tanto precisa ser, de direito e de fato, independente, sem prejuízo, é claro, dos próprios controles republicanos a que se encontra, por sua vez, submetido, no bojo do mesmo sistema constitucional de freios e contrapesos já referido.



[1] Ministro Celso de Mello, em voto proferido no HC 67.759-2 RJ (julgado pelo Pleno do STF em 06-08-92). 
[2] Segundo o inc. XII, compete privativamente ao Presidente da República “conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”.
[3] Por coincidência, tratava-se Sepúlveda Pertence, o mesmo que, posteriormente, já na qualidade de Ministro do STF, viria a ser o relator do aludido M.S. 21.239-0, proferindo o vigoroso voto em favor da independência institucional do Ministério Público.
[4] Segundo o art. 26 da L.C. 75/93, são atribuições do Procurador-Geral da República, como Chefe do Ministério Público da União: (...) IV - nomear e dar posse ao Vice-Procurador-Geral da República, ao Procurador-Geral do Trabalho, ao Procurador-Geral da Justiça Militar, bem como dar posse ao Procurador-Geral de Justiça do Distrito Federal e Territórios; (...) IX - prover e desprover os cargos de carreiras do Ministério Público da União e de seus serviços auxiliares; (...)”.

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